Um caso de escrita platónica
Tenho duas horas para queimar. Decido jantar sozinho. Entro num restaurante e sento-me numa mesa para dois. Em redor fracassos do Cupido acompanham-se de perto, no repasto comum, enquanto fitam a paisagem de viagens mentais, percorrendo trajectos distantes sem quaisquer pontos de intersecção que não o ponto de partida, o prato escolhido para o jantar.
Numa mesa um filho adolescente acompanha os pais alimentando-se de forma estranha. Não a comida em si, falo do modo como se alimenta. A forma como articula o braço para levar o garfo à boca fá-lo ferir a própria testa com as unhas da mão que agarram o talher.
Bloqueio tudo isto, hoje não, hoje nada, hoje eu. Em minha frente coloco um caderno aberto em página em branco, sobre ele a única caneta que tenho comigo. Há meses. Quantos? Será que há anos?
Pouso a mão sobre o caderno segurando a caneta cuja carga, translúcida pelo seu fim, miraculosamente deixa o seu/meu traço no papel ao ser arrastada pelos dedos que nela se amparam como se fosse a sua muleta.
Talvez por conter um bico fino, exímio doseador de tinta permanente, tenta que eu escreva uma derradeira história de Amor. Um entrelaçar de fios condutores destinados apesar de desavindos, uma inspiração cármica que deixe os seus leitores a suspirar, confortados por comprovar que Ele existe à espera de um encontro fortuito e certeiro.
Pois eu te pergunto a ti, moribunda caneta minha, quem hás tu amado e quem te terá amado? A ti que passaste uma vida de escriba, sob meu jugo, desgastando-te a meu preceito, uma vida encafuada na mochila sem nada ver para além dos cadernos de que usas e abusas a meu mando. Será a eles? Um deles? Todos eles? Terás sentido dor sempre que deles colhia as páginas, frutos do teu labor? Ou serás simplesmente apaixonada por mim por evidente complexo de Édipo?
Imagino que amar sendo caneta não seja coisa fácil. Tens vida curta, sem vontade própria. Precisas de uma mão que de ti faça servidão. Talvez nas mãos fracas exerças alguma forma de dominância conseguindo escrever o que pretendes dizer. Comigo não, não seria possível. Escrevo com pulso firme e forte, terias de me domar de outra maneira que não a força. Por exemplo esculpindo a minha caligrafia com traços que não os meus, elevando-lhe a finesse estética, ou borrando-me as mãos em ejaculações grossas, esporádicas e inexplicáveis tendo em conta o teu fino recorte, ou, melhor ainda, desafiando a lógica da tua finitude escrevendo-me, escrevendo-te, escrevendo-nos, infinitamente, muito além da marca que denota o fim da tua existência física.
Se realmente fosses minha amante quão triste seria para ti perceber que te esgotaste, sem oportunidade de te revelares, que num último fôlego, decidida a vencer-me, e ao consegui-lo, ao escreveres finalmente as tuas palavras, as tuas linhas, te faltassem as forças desvanecendo aos poucos sem conseguir dizer-mo... Uma luta de esforço acrescido pois esta é uma página de um caderno sem linhas e o amor pauta-se por linhas tão tortas como as de Deus. Talvez por isso antes que partas quero que saibas que mais do que a partilha do que escrevemos ficam comigo as lembranças de tudo o que riscámos juntos.
domingo, novembro 23, 2014
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Crónica (ou género disso)
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Escrito de Fresco porquê?
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1 comentários:
Muito bom. Escrita que passa da mente para a caneta e por fim o papel, aqueles devaneios que o quotidiano nos oferece. Vou seguindo.
Abraço
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Olá... estou-te a ver! Podes falar mal ou falar bem mas com juizinho sff! Beijinho e/ou Abraço