Mais uma alvorada, mais uma jorna

O voltar da alvorada anuncia-me mais um dia de serviço. Mais um dia em que me vendo a outrém, vivendo o que me comanda fazer. Visto-me de vermelho como nos outros dias, provando ser o mais hábil dos camaleões, e saio. Em casa deixo esposa galante, filhos saltitantes, pinturas, artefactos e manifestos criados em tertúlias empolgantes. Um vibrar de vida pulsante.

À medida que me afasto vou perdendo pulso. Caminho pesadamente, sobrecarregado pelo meu instrumento de trabalho. A troco de soldo deixo de ser um pensador, tornado-me mero executor. Finjo que o tinir das moedas me ensurdece, que o brilho do ouro me cega, que a língua me entorpece ao sentir o seu sabor metálico.

Na verdade consigo apenas não falar. Vejo, ouço e penso sobre cada face, cada gesto, cada argumento, cada jura, cada sentença. Uma insignificância quando há concordância. Um suplício quando perante uma inocência culpada.

Pé ante pé chego ao cruzamento mais movimentado da cidade. Aqui, onde o atropelamento não se perde em vaidade, olho em todas as direcções, inclusive para o céu! Não vá em caso de infortúnio algum engarrafamento me obrigar a fazer um desvio pelo Inferno! Teria eu salvo-conduto por entre os seus carrascos? Ai está uma dúvida que me aflige e não me apraz descortinar.

Livrando-me da colhida apresso-me a entrar no tribunal e consultar a guia de tarefas do dia. Tal é a intensidade dos trabalhos de hoje que, à medida que o dia passa, ficarei certamente com as calças completamente ensopadas pelos respingos do sangue, suor e lágrimas, avivando a sua vermelhidão. Normalmente é na pausa entre cada tarefa que projecto esboços das minhas futuras criações e planeio o ajuntamento do tempo e materiais necessários. Apesar de embrutecedoras, são as artes do meu ofício que me sustentam. Sem elas não poderia explorar todas as outras. Quando me perguntam o que faço, não respondo com o indicar da minha profissão. A ela eu não a faço, eu executo-a. Trabalho, porque tem que ser, naquilo que me calhou sendo que me recuso a enfiar o seu capuz.

Afinal não deixarei que as coisas que tenho de fazer matem as coisas que gosto de fazer.


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Olá... estou-te a ver! Podes falar mal ou falar bem mas com juizinho sff! Beijinho e/ou Abraço

Escrito de Fresco porquê?

Há quem me tome por incontinente verbal mas a verdade é que a minha língua não tem débito suficiente para o turbilhão de pensamentos que me assolam a mente a todo o momento. Alguns engraçados, outros desgraçados, mas vários merecedores desta lapidação digital para a posteridade e, quem sabe, para a eternidade. Os escritos aqui presentes surgiram do nada e significam aquilo que quiseres. Não os escrevi para mim mas sim para ti. Enjoy

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