A Fotografia Perdida

Aguardo na praça, entre o jardim e a igreja, que os meus companheiros escolham alguns souvenirs de entre as obras de arte dos artistas locais na feira de candonga improvisada. Estou apenas ali, encostado a uma grade fria e rija sentido aquelas cores, sons e cheiros.

De súbito no banco vazio em frente a mim acomoda-se um anónimo.Aparenta ser mais um mas de repente surpreende-me. Adopta uma posição de semi-abertura de pernas, braços abertos estendidos sobre a tábua de encosto, e a cabeça reclinada para trás de forma a ser banhada pelos raios de luz que rasam a sombra que lhe cobre o resto do corpo.

Veste umas sandálias que prendem os pés com três tiras, uns calções esfarrapados e uma t-shirt temática da qual não me lembro o tema. A barba está semi-cerrada e usa uns óculos escuros seguramente com idade similar à sua que andará à volta dos 50s e muitos. Numa das mãos, a sua direita que está à minha esquerda, estende um charuto aceso que fumega por vontade própria.

Será um turista? Será um vagabundo? Será um dos habitantes locais?

De repente por detrás de uma das lentes escuras escorre uma lágrima que provoca um reflexo brilhoso. Uma única lágrima a partir do seu olho direito, que ainda está à minha esquerda. Grossa e contínua, pára junto à sua narina crescendo de volume devido ao caudal.

Uma mosca pousa-lhe na face esquerda, essa sim à minha direita, e percorre-lhe os pêlos esbranquiçados. Ele nada! Imóvel, sereno. "Que fotografia perfeita!", penso eu. "Tiro-a?". Mas tenho a máquina pendurada junto ao estômago que já formiga com a ideia de captar aquela imagem única cheia de contrastes. Um aparente vagabundo, com um toque aristocrático e fashion dados pelos charuto e óculos escuros, seguidos pela melancolia da lágrima e apatia da mosca.

Hesito...ele está a dois metro de mim... vai ouvir o click... como reagirá? Terei o direito de lhe invadir este momento? Mas a imagem é de uma perfeição tal sobre uma condição humana que faria a delícia de todos com quem a partilhasse. Talvez até fosse premiada, quem sabe?

Respiro fundo e carrego no botão da máquina para a ligar. Ouve-se um simples e doce Tzzzzzzz da objectiva a colocar-se em posição e ele move-se. Olha em redor passando os olhos por mim por 2 ou 3 segundos. Pausa e volta a recolocar-se na sua posição mágica. Tzzzzz acobardo-me, ou respeito-o, e desligo a máquina. Resigno-me com o facto de que serei o túmulo deste momento irrepetível.

Em todo este tempo nem uma baforada foi dada no charuto e a lágrima ainda lá está. Já a mosca, essa foi-se.


PS - não o fotografei (este é outro qualquer) mas escrevi-o.

5 comentários:

Anónimo disse...

Com essa discrição, dispensava sem dúvida qualquer fotografia.Foi como se estivesse ao lado dessa figura e ao mesmo tempo, apeteceu-me reconfortá-lo...nem sei porquê.

:)

Anónimo disse...

Fotografia perdida ou Homem encontrado?

Blonde smiley;)

Anónimo disse...

ah e ups:( é descrição e não discrição embora também o pareça ser:)

Margarida disse...

Momentos privados que fogem em publico. Quem sabe a figura que faremos um dia algures por esse mundo? E se a alma nos fugir para mais que duas ou três lágrimas, despertas na recordação de algo que se perdeu...e se tivermos perdido a vontade do presente num erro do passado? E se a nossa fotografia se tornar famosa porque somos uma desgraça perfeita do efémero? Será que nos importaremos ou apenas sorriremos com a ironia de sermos úteis quando nos sentimos tão impotentes e inúteis?!

O Mundo de Farnia disse...

eh lá. Isso é que é profundidade. Estranhamente a desgraça alheia tem sempre tanto fascínio...

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Olá... estou-te a ver! Podes falar mal ou falar bem mas com juizinho sff! Beijinho e/ou Abraço

Escrito de Fresco porquê?

Há quem me tome por incontinente verbal mas a verdade é que a minha língua não tem débito suficiente para o turbilhão de pensamentos que me assolam a mente a todo o momento. Alguns engraçados, outros desgraçados, mas vários merecedores desta lapidação digital para a posteridade e, quem sabe, para a eternidade. Os escritos aqui presentes surgiram do nada e significam aquilo que quiseres. Não os escrevi para mim mas sim para ti. Enjoy

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